APOCALIPSE 12 E A MULHER LATINO-AMERICANA – Juan Stam (tradução)

APOCALIPSE 12 E A MULHER LATINO-AMERICANA – Juan Stam (tradução) – http://juanstam.com/dnn/Blogs/tabid/110/EntryID/112/Default.aspx

 

O capítulo doze do Apocalipse apresenta uma narrativa imensamente dramática, de uma luta desigual entre uma mulher grávida e um dragão feroz e faminto. É a história de uma mulher assediada pelas forças da maldade em sua mais extrema realidade. Começa com dois “sinais no céu”, avisando-nos, de antemão, que o relato será simbólico, com significado transcendental e arquetípico. Para este ensaio, nos interessam os versículos 1-6:

Apareceu no céu um sinal maravilhoso: uma mulher revestida de sol, com a lua abaixo de seus pés e com uma coroa de doze estrelas na cabeça. Estava grávida e gritava as dores e angústias do parto. E apareceu no céu outro sinal: um enorme dragão vermelho flamejante, que tinha sete cabeças e dez chifres, e um diadema em cada cabeça. Com sua calda, arrastou a terceira parte das estrelas do céu e as lançou sobre a terra. Quando a mulher estava a ponto de dar à luz, o dragão se pôs diante dela para devorar seu filho ao nascer. Ela deu à luz um filho homem, que governará a todas as nações com cetro de ferro. Mas seu filho foi arrebatado e levado até Deus e seu trono. A mulher fugiu para o deserto, para um lugar que Deus lhe havia preparado, para que ali a sustentassem por mil duzentos e sessenta dias.

 

O Apocalipse bem que poderia ter terminado com a sétima trombeta, em que “o reino deste mundo passou a ser de nosso Senhor e de seu Cristo” (11:15) e “há chegado teu castigo, o momento para julgar os mortos” (11:18). Os onze primeiros capítulos do Apocalipse teriam constituído uma mensagem muito coerente e completa, com seu clímax na sétima trombeta. Do doze em diante, João volta a contar o que é basicamente a mesma história a partir, porém, de um ângulo muito diferente. No interlúdio entra a sexta e a sétima trombeta, Deus renova a vocação profética de João, mas agora, diferentemente da primeira metade do livro, Deus o chama a profetizar “sobre muitos povos, nações, línguas e reis” (10:11). Esse mandato, João cumpre não segunda metade do livro.

 

A fórmula quadripartida de 10:11 é muito típica no Apocalipses [1], mas quase sempre aparece de formas diferentes, e somente em 10:11 inclui “reis” (no lugar de “tribos”) [2]. Esse fato, que não pode ser casual, intensifica notavelmente a concentração política da vocação de João o restante do livro, e é precisamente o que ele passa a fazer: denuncia, sem papas na língua, o império romano e seus imperados [3]. Sem essa chave política, anunciada já em 10:11, é impossível entender bem os capítulos 12-22.

 

Podemos identificar nos capítulos 12-19 pelo menos quatro tema e propósitos deste macro-bloco textual: oferecer uma análise e uma crítica proféticas da política de sua época; articular uma teologia da toda a história humana como luta entre Deus e o diabo, desde a criação do mundo (Gênesis 3:15) até a Nova Criação; explicar o porquê da perseguição aos fiéis quando sabemos que Cristo já venceu e o diabo está derrotado; e, finalmente, infundir esperança, insistindo uma e outra vez no triunfo final do Reino de Deus. Nesse contexto, o relato do parto de uma mulher é a introdução a todo o resto do livro  e a chave central para seu sentido e mensagem.

 

Na narração de 12: 1-6, 13-16 [4] figuram três personalidades centrais: a mulher, o dragão e a criança. O texto diz explicitamente que o dragão representa o diabo, a antiga serpente (12: 9-10), e a alusão ao Salmo 2, que à época se interpretava messianicamente (12:5), nos permite entender que a criança é Jesus. O significado simbólico da mulher é mais complicado e muito discutível. A melhor conclusão é que o simbolismo em torno dela funciona em vários níveis. No nível fundamental, ela é Eva, a mulher de Gênesis 3:15, cuja prole lutará em dura batalha contra a serpente, que é precisamente o que ocorre neste capítulo do último livro das escrituras. Ela representa a Israel, ou mais exatamente a Sião, a parturiente que engendra o Messias (Isa 26:15-18; Jer 4:31; Miq 4:9-10) [5]. Também pode muito bem representar Maria, como mãe biológica de Jesus, embora uma Maria que grita com dores de parto (12:2) e tem outros filhos (12:7). Por outra parte, depois da ascensão da criança a seu trono (12:5), a mulher se transformar no símbolo da igreja perseguida (12:6,13-17) [6].

 

Ainda que o dragão se apresente nesta passagem como feroz e muito aterrorizador, devorador de crianças, de fato nada vai bem pra ele… Espera, com água na boca, o nascimento da criança (sua rival), mas ela, ao nascer, é arrebatada ao céu; e, ao invés de acabar dentro do estômago do malvado dragão, termina sentada no trono do universo (12:5). Em continuidade, segue-se uma batalha no céu [7], na qual Miguel dá ao dragão “a mãe de todas as derrotas” e o lança violentamente à terra (12:9-10). Segundo fracasso! Ele tenta, então, vingar-se da mulher, a mãe da criança, mas crescem nela e ela sai voando para um lugar de refúgio (12:13-14). Derrotado outra vez! Em seguida, vomita um grande jorro de veneno diabólico [8], mas a terra mesma “abriu sua boca” e tragou esse rio ameaçador. Agora, totalmente frustrado e furioso, o diabo determina uma nova estratégia para atacar aos demais filhos da mulher (cristãos contemporâneos daquele livro) por meio das bestas (Ap 13; primeiramente, o império romano e o sistema idólatra imperialista).

 

Quando se lê esse relato nesse contexto histórico, é impossível não reconhecer o quanto o mesmo tem muito significado para nossa vida, nós que vivemos agora sob outro imperialismo unipolar mundial. Também na forma de expressar-se escolhida por João podemos perceber certos princípios e pressupostos que são hoje mensagem para as mulheres do mundo moderno, e especificamente para as mulheres da América Latina [9]. Dedicamos a isso o restante deste ensaio.

 

A história de uma mãe solteira

 

A primeira coisa a chamar atenção nesse texto é que, para esta mensagem transcendental, João começa narrando a história de uma mãe solteira. Ali, gemendo e retorcendo-se em suas dores de parto, ela se encontra absolutamente só, ilhada e abandonada diante do monstruoso dragão. Em todo o relato não aparece José nem outros defensores, tampouco outras mulheres que lhe sejam solidárias. Só a acompanha naquele horrendo cenário seu inimigo, o dragão, e não havia dúvidas para ela de quais eram as intenções desse malvado monstro [10]. Ela gritava, mas só o dragão escutava seu clamor, e o escutava com a malévola satisfação de quem estava a ponto de devorar a criatura.

 

Bem sabemos que ela não estava sozinha, que Deus estava com ela e a iria amparar, mas será que ela sabia disso? Deus só aparece no relato depois; a narrativa destaca, de modo muito dramático, sua absoluta solidão. Ainda quando Deus interveio para resgatar o bebê, teria ela entendido? Nada indica que sim. O que ela deve ter sentido na angústia de sua solidão era, provavelmente, também ausência de Deus, como o salmista em diferentes momentos. Que poderia ser mais angustiante que crer em Deus e sentir somente sua ausência?

 

É surpreendente quando nos damos conta que esta passagem nos relata o Natal segundo o Apocalipse. Para esta mulher, não foi nada ao estilo “Oh! Santíssimo, felicíssimo e agraciado tempo de Natal”. Nem tampouco “Natal, natal, é um dia de alegria e felicidade”. Esta mulher não fazia cantava canções natalinas, ela gritava alaridos de dores de parto. A passagem nos adverte contra o perigo de sentimentalizar e romantizar demasiadamente o Natal e celebrá-lo com total insensibilidade em relação aos que sofrem.

 

Claro, há um grande valor humano nos belos relatos evangélicos de Natal, muito bem destacados na versão novelística a eles dado por José Saramago. Ali está um José terno e atento, solícito ao bem dela. Nas canções natalinas e em muitas pinturas, até os animais adoram a criança, para o assombro e deleite da mãe:

 

Allá en el pesebre, do nace Jesús,

la cuna de paja nos vierte gran luz;

Estrellas lejanas del cielo al mirar

Se inclinan gozosos

su lumbre a prestar.

 

La vaca mugiendo

despierta al Señor,

Mas no llora el niño,

pues es puro amor…

 

Segundo um cancioneiro popular, os reis do oriente vêm ver “O menino Deus, que sorri/ Entre uma mula e um boi, / Ainda que todo mundo saiba / Que é Rei dos reis”. A tradição natalidade nos apresenta um menininho muito sublime, mas pouco humano e pouco real.

 

O capítulo doze de Apocalipse dá uma perspectiva muito diferente sobre o Natal. Esse trecho natalino não aparece no lecionário eclesiástico da época, em é muito provável que seja um texto a ser usado nos sermões dessa ocasião. Nele, o Natal é um dia de ameaça, perigo e luta. Enquanto os evangelhos e nossos hinos, os pastores e os sábios do oriente buscam a criança para adorar, no Apocalipse o dragão o espera para devorar.

 

Este relato, tão diferente, dever entrar também em nossas celebração natalina, para inspirar entre nós mais compaixão e mais empatia com os que sofrem e se encontram sozinhos e sozinhas em sua angústia [11]. Não lhes parece que deve mover-nos a levar em conta a situação das mães solteiras, chamando-nos a maior solicitude em relação a elas e atuação no sentido de ampará-las?

 

Uma mulher que vive ameaçada por um monstro (12:4).

 

Como se as dores do parto não fossem sofrimento suficiente para esta mulher (e as teve, ao que tudo indica, fortíssimas), ela, para piorar, teve que se encontrar cara a cara com um monstro. E não foi um inimigo qualquer, mas o eterno inimigo de todo o bem e humano, o diabo mesmo. Pobre mulher, tão próxima do monstro e, aparentemente, tão longe de Deus!

 

Alguém pode se perguntar sobre desde quando tinha aquela mulher aquele monstro a sua frente. Não sabermos, mas podemos suspeitamos que a resposta possa ser “desde pouco tempo” ou “desde sempre”. Duvido que o dragão tenha chegado de última hora, somente a tempo do parto; suspeito que há muito tempo se aproximava e a atormentava. Ela já conhecia todas as suas malícias e manhas, daí que seu desespero tenha sido maior.

 

Há certamente uma lição geral aqui: estamos sempre em frente ao príncipe das trevas, aquele cujo ofício é mentir e matar (Jn 8:44; Ap 12:9; 20:8). Mas creio que o ensino é muito mais específico: nos fazer ver a especial vulnerabilidade da mulher e a enorme solidão a partir da qual ela tem que fazer frente ao dragão que a ameaça.

 

Nas últimas décadas, começamos a nos dar conta da praga tão alarmantemente expandida da violência doméstica. Muitas mulheres, tal como aquela nesta passagem, vivem dia e noite em frente a monstros, e isso dentro de casa! Cresce em quase todas as sociedades a violência sexual contra mulheres, e também seu assassinato (feminicídio), em geral por aqueles que elas, por desgraça, têm mais próximos. Especialmente repugnante e reprovável é a violação sexual de inocentes meninas, quase sempre por seus próprios pais ou padrastos, causando-lhes danos para o resto de suas vidas.

 

Em todos os espaços sociais, se faz presente novamente o grande monstro do Apocalipse 12.

 

Uma mulher que perde seu bebê recém-nascido (12:5)

 

Finalmente, esta mulher chega a dar à luz, depois de longos e difíceis meses de gravidez, mas o bebê é arrancado de seus braços instantaneamente após o nascimento. Nós, os e as leitoras, sabemos bem a lógica teológica desse estranho acontecimento, mas nada indica que ela o tenha entendido. É quase seguro que seu caso era como o de Jó, que não tinha como entender o que lhe estava acontecendo. E isso é, às vezes, o mais difícil dos momentos de dor e perda.

 

A esta mulher, como a toda mãe, sua gravidez havia preparado para a lactância, mas agora ela ficaria com o leito nos peitos mas sem o bebê nos seus braços [12]. Havia sofrido tanto, e as dores do parto haviam sido tão insuportavelmente intensas, e agora não tinha sua criança. Nem pode chegar a dar-lhe um primeiro beijo… Não posso imaginar o que lhe ocorreu no instante em que lhe tiraram sua criança; só sabemos que, rápida e cruelmente, seu pequeno tão esperado já não estava mais.

 

O relato de nascimento de Jesus segundo São Mateus tem alguns paralelos com este relato. Ao nascer, o Messias é ameaçado pela crueldade de Herodes. Muitas mães de Israel perdem seus filhinhos homens recém-nascidos diante do poder infanticidade do regime (novamente, Saramago apresenta o fato com especial ternura). No evangelho, a criança salvadora não é raptada para o céu mas levada ao exílio no Egito, com sua mãe e pai (Mt 3:13-18). Assim o Filho de Deus começa sua vida, como um refugiado longe de sua terra natal.

 

De muitas forma, este relato corresponde à triste experiência de muitas mães latino-americanas. A mortalidade infantil lhes arrebata seus filhos assim que saem de seus ventres. Muitos morrem no parto, ou morrem um pouco depois por desnutrição e outras enfermidades, que com uma mínima atenção médica se poderia curar. Outras crianças são sequestradas ainda recém-nascidas, ainda dentro dos hospitais. A pobreza extrema é uma assassina que, nessa terras, mata a milhões de crianças. Muitas, mas muitas, mães latino-americanas também sofrem a dolorosa perda do fruto de seu ventre.

 

Depois de perder sua criança, a mulher termina refugiada (12:6,13-16).

 

Novamente, é certo que isso é uma benção de Deus para proteger-la, mas para ela, afinal, é um doloroso exílio. A criança é levada ao céu e ela ao deserto. A criança recebe a proteção que necessita toda criança, e esta em particular, mas a mãe não recebe nenhuma consolação em compensação pela perda de seu filho. Para ela, o próximo passo foi ser refugiada no desterro. Até onde nos conta essa passagem, a mulher nunca sai do deserto. Mãe e criança nunca voltarão a ver-se dentre do relato [13]. A narrativa nos faz supor que ela morre no exílio, e que a guerra continua contra seus demais filhos.

 

Sem dúvida, Deus estava com ela no exílio. O lugar foi um refúgio que Deus preparou pra ela e, em certo sentido, uma antecipação do “lugar preparado”, que nos promete o Cristo (Jn 14:1-2). Conseguia ela reconhecer a graça de Deus em meio ao exílio? O certo é que, no exílio, Deus lhe proveu de tudo aquilo que é essencial: albergue, proteção e alimentação (12:6,14).

 

O doloroso fenômeno do exílio, tão amplamente conhecido pelas famílias de muitos países de nosso continente, separa pais e filhos de sua pátria e muitas vezes uns dos outros. É especialmente difícil e duro para as mulheres, sobretudo quando são mães solteiras. E não estaria Deus preocupado, hoje, com os milhões de exilados de nossos países latino-americanos? Certamente, e ainda mais, Deus quer que nós, seus filhos e filhas, sejamos, hoje, seus instrumentos para ajudá-los a levar uma vida digna e plenamente humana, apesar de encontrarem-se longe de suas próprias pátrias.

 

Nosso Deus é um Deus alimentador e espera que colaboremos com ele em seu projeto de “Fome Zero”. José, o primeiro carismático da Bíblia (Gn 41:38; visões e sonhos) dedicou o melhor de sua vida a um grande projeto de alimentação internacional “para manter em vida a muitos povos” (Gn 41-50; 50:20). Segundo a fé e o louvor de Israel, toda comida vem de Deus (Sal 104.13-15; 136.25; 147.7-9; 2Co 9.10). Isso está destacado muito dramaticamente no Salmo 136. Depois de uma introdução (136:1-4), segue um longo louvor pela criação (136:5-9) e pelo êxodo (136:10-22), os dois momentos supremos da história da salvação. Mas, em seguida, o salmista atualiza a misericórdia de Deus, primeiro porque se lembra de seu povo e o liberta de seus adversários (136:23-24) e segundo porque “alimenta a todos ser vivente” (136:25). Essa frase final, que de nenhuma maneira é anticlímax, põe o alimento diário de animais e humanos (tanto judeus como gentis, tanto cristãos como ateus ou comunistas) na mesma linha das grandes proezas salvíficas de Yahvé.

 

As condições de fome e desnutrição, sejam de refugiados ou nacionais, devem preocupar-nos profundamente, orientar nossas opções política e levar-nos à ação. Para milhões de seres humanos, é um assunto de vida ou morte. Na conferência diante do XXIV Concílio Geral da Igreja Evangélica de Confissão Luterana (IECLB), em São Leopoldo, Brasil, o conhecido teólogo e autor Frei Betto apontou que a fome mata a 2 mil pessoas a cada dia e “faz mais vítimas que a guerra, o terrorismo, as enfermidades e os acidente de trânsito somados” [14]. Isso deve nos motivar a atuar para eliminar esse flagelo e colaborar a favor de uma alimentação adequada para todo ser humano, começando com as refugiadas que encontramos ao nosso lado.

 

O dragão odeia às mulheres e crianças, mas Deus as protege [15]

 

Como podemos reconhecer a presença e atividade de Satanás na história? Jesus, numa polêmica com os líderes judeus, caracterizou o diabo com toda clareza: “Desde o princípio, ele é assassino e não se mantém na verdade, porque não há verdade nele” (Jn 8:44). A mentira e a morte: isso define a essência do diabólico. Mente para poder matar, e mata para impôr suas mentiras. Seu reino é um reino de falsidade e violência.

 

O objeto preferido da fúria assassina do diabo, como nesta passagem, são as crianças e suas mães. O infanticídio diabólico é um tema frequente ao longo da Bíblia, um dos fios paradigmático que dão unidade a sua mensagem. Quando Moisés nasceu, Faraó organizou o assassinato em massa de crianças, arrancadas cruelmente dos braços de suas mães (Ex 2:1-10). A sombra demoníaca por trás de todo infanticídio era o sacrifício das crianças a Moloc (Lv 18:21; 20:2-5; 1 R 11:7,33). O Senhor pede que Abraão sacrifique seu filho Isaac, sinalizando-lhe que o verdadeiro Deus não espera menos de nós que os falsos deuses, mas em seguida Deus provê um substituto (Gn 22:8,12). Quando Jesus nasceu, segundo São Mateus, “Herodes buscou a criança para matá-la” (2:13) e desatou um massivo massacre de todas as crianças menores de dois anos em Belém (2:16). E como no Antigo Testamento o ídolo Moloc estava por trás dessas guerras com a infância, agora no Apocalipse aparece o dragão satânico por trás da agressão à mulher e à criança.

 

Mas aparece um amigo dessa mãe e seu bebê: Deus vem ao resgate de ambos, me maneiras diferentes. À criança, a liberta das garras do dragão, arrebatando-a ao céu e sentando-a ao seu lado, como corregente da história (cf. a ascensão de Jesus). A criança não sofrerá mais nem estará sujeita a outros ataques satânicos; de fato, para efeitos narrativos, a criança desapareço do relato.

 

Deus resgata a mulher para o lugar de refúgio que lhe tinha preparado no deserto (12:6,14).  Mas, diferentemente de sua criança, a mulher segue exposta à possibilidade de ataques satânicos. Vive em permanente exílio, numa espécie de clandestinidade, mas os embates do dragão não conseguem alcançá-la. Será diferente o destino de seus demais filhos, que serão perseguidos pela besta (12:17, cap. 13).

 

O Deus da Bíblia é Deus da vida e defensor da mulher e da criança [16]; o diabo é anti-vida, anti-mulher e anti-criança. Deus toma partido especialmente a favor da vida ameaçada. O dragão, em sua grosseira bestialidade, não tem escrúpulos em perseguir uma mulher grávida para devorar seu filho. Deus, diferentemente, acude às crianças em alto risco e às mulheres em estado de vulnerabilidade, violação e abuso. O Deus da Bíblia tem um cuidado especial pelos indefesos e marginalizados:

 

Cantem a Deus, cantem salmos a seu nome…

Pai dos órfãos e defensor das viúvas…

Deus dá um lugar aos desamparados

e liberta aos cativos (Sal 10:14,18; 68:5-6; cf. 146:9).

Porque o Senhor teu Deus é Deus dos deuses,

e Senhor dos senhores,

ele é o grande Deus, poderoso e terrível…

Ele defende a causa dos órfãos e da viúva,

e mostra seu amor pelo estrangeiro… (Dt 10:17-18)

 

Deus manda também a seus filhos e filhas defender os frágeis, os órfãos e as viúvas (Sal 82:3; Dt 14:28-29; 16:11,14; 24:17,19-21; 26:12-13; cf. Job 31:17,21; Jer 49:11) e lutar por justiça para eles (Is 1:17,23; 10:2; Jer 7:5-7; 22:3; Zac 7:10). Mas os malfeitores os maltratam e os matam (Sal 94:5; Mal 3:5; Job 6:27; 22:9; 24:3,9; Is 10:2; Jer 5:28; Ez 22:7).  São os herdeiros de Faraó e de Herodes.

Nossa época tem visto muitos faraós e herodes… Como eles, os ditadores latino-americanos têm odiado as mulheres e crianças. Em Nicarágua, a Guarda Nacional de Somoza tirava os jovens de suas casas, os assassinava em plena rua e incinerava seus cadáveres. Ao menino Luis Alfonso Velázquez, brilhante orador e militante da Frente Sandinista, de doze anos, o assassinaram a sangue frio e passaram um tanque por cima do corpo.

 

Mas não somente com a espada e fuzis se matam crianças e mulheres. Também estruturas socioeconômicas os matam de fome. Em agosto de 1514, nos arredores Sancti Spiritus, Cuba, Bartolomé de las Casas estava preparando seu sermão dominical sobre um texto do livro deuterocanônico de Eclesiástico:

 

Roubar algo aos pobres e oferecê-los a Deus,

é como estrangular um filho diante dos olhos de seus pais.

O pão do pobre é sua vida;

quem o tira é um assassino.

Tirar-lhe a comida ao próximo é como matá-lo;

não dar ao trabalhador seu salário é tirar-lhe a vida (34:20-22).

 

Ali, nas margens do Rio Tuinucú, Deus falou ao coração de Bartolomé de las Casas e o convenceu de seu pecado, como participante do sistema colonial espanhol. Hoje também nosso sistema econômico injusto mata viúvas e assassina órfãos. Na mesma Cuba em que estava Bartolomé em 1500, o embargo econômico estadunidense condena a milhões de crianças a uma vida de permanente fome.

 

Satanás é sempre inimigo das mulheres e crianças, mas Deus os defende e os protege. Aonde quer que vejamos violência contra crianças e mulheres, podemos saber que o dragão está presente e ativo. Aí é onde o Deus da Vida nos chama ao compromisso com a causa de seu Reino, em defesa da cada mulher e criança, nos nos ensina o capítulo doze do Apocalipse.

 

Bibliografía:

Caird G. B, The Revelation of St. John the Divine, Nueva York: Harper & Row, 1966.

Foulkes, Ricardo, El Apocalipsis de San Juan, Bs.As: Nueva Creación, 1989.

Pippin, Tina, “The Heroine and the Whore: Fantasy & the Female in the Apocalypse of Juan”, Semeia 60:1992, pp. 67-82.

Ramírez-Kidd, José E.  El extranjero, la viuda y el huérfano en el Antiguo Testamento, San José: Universidad Bíblica, 2003.

Richard, Pablo, Apocalipsis: reconstrucción de la esperanza, San José: DEI, 1994.

 

[1] A fórmula acontece em 5:9; 7:9; 11:9; 13:7; 14:6; 17:15.

[2] Stam Apocalipsis Tomo II, 281-282: O livro de Daniel repete oito vezes uma uma fórmula similar mas tripartida, sempre na mesma ordem (povos, nações e línguas: Dn 3:4,7,29; 4:1; 5:19; 6:25; 7:14; cf. Jdt 3:8), derivada evidentemente da terminologia dos império persa. João a transforma em fórmula quadruple, provavelmente porque o número quatro simboliza o mundo inteiro. Esta origem na terminologia do governo persa explica também a inclusão de “línguas”, já que era um império plurilíngue. O Apocalipse inclui “línguas” na fórmula, ainda que João nunca profetizou sobre nenhum grupo linguístico. Os decretos persas naturalmente incluem “todos” com a fórmula (exceto Dn 3:4); em outro contexto e com outro sentido, Ezequiel fala mais propriamente em “muito povos” (Ez 3:6). No Apocalipse, 10:11 temos a única vez que a fórmula diz “muitos”.

[3] Ibid: Nas profecias com as quais João cumpre esta renovada comissão profética, falará especificamente de sete imperados romanos junto com um oitavo (17:10-11), além de “os reis da terra” em geral (16:14; 17:2; 17:18; 18:3,9; 19:19; cf. 21:24), “os reis do oriente” (16:12) e outros dez reis (os chifres da besta, 17:12), aparentemente aliados e súditos do governo imperial. Anunciará também as “guerras mundiais”, o Armagedón (14:20; 16:16; 19:11-21) e o ataque abortivo de Gog e Magog (20:8-10). Nada disso é de fácil interpretação, mas é claro que em seu conjunto constitui uma mensagem profética sobre reis e reinos de ontem, hoje e amanhã.

[4] Por rações de espaço omitimos o episódio de 12:7-12; ver Foulkes 1989:137-138; Richard 1994:128-130; Caird 1962:31-33; e também a extensa exposição de Stam, Tomo IV, al salir pronto (2006).

[5] Diferete desta passagem, o Antigo Testamento, descreve ainda a Israel como grávida e com dores de parto, nunca o descreve com as glórias celestiais do Apocalipsis 12:1-2 nem os simbolismos astrais, que teriam sido muito ofensivos para a mentalidade hebréia.

[6] Nem Israel nem Maria foram perseguidos da forma descrita neste texto, que sinaliza a igreja. De toda forma, só essa interpretação da última fase do simbolismo da mulher se enquadra com o tema e propósito da passagem de interpretar teologicamente a perseguição dos crentes.

[7] Uma possível interpretação de 12:7 é que o dragão perseguiu a criana com inteção de sequestrá-la, mas não conseguiu.

[8] O texto não diz que foi veneno, mas que outras coisa poderia sair dessa boca? (12:15; cf. 16:13).

[9] Estas contextualizações não pretendem ser estritamente exegéticas nem se propõem como palavra inspirada de Deus. Tampouco pretendemos que João mesmo estivesse pensando em tudo isso, ou mesmo que também João fosse feminista. Minha intenção no capítulo, como acabo de explicar, foi outra. Mas creio encontrar propostas e valores por trás do texto, sem os quais João não teria podido escrever o que escreveu, e que é legítimo explicitar o que no texto fica implícito.  E mais, creio que João haveria entendido esta análise e estaria em acordo a ela!

[10] Este relato é a culminação de um paradigma que vai desde Faraó ate Herodes e passa pelos sacrifícios infanticidas a Moloc, reinterpretado radicalmente pelo relato do sacrifício de Isaac por Abraão. Essa sede do diabo por sangue de crianças era muito conhecida.

[11] Sobre este “natal apocalíptico”, veja-se Stam Apocalipsis Tomo III (no prelo) e “o natal no Apocalipse”, em revista Maranata, #267, diciembre de 2004.  Al respecto, la canción de Carlos Mejía Godoy, “Feliz Navidad”, es muy desafiante e inspiradora.

[12] Cf. uma descrição parecida em Tina Pippin 1992:72.

[13] Muito depois João vai apresentar outra mulher, “a esposa do Cordeiro”, mas esta pertence a outro complexo simbólico, sem continuidade narrativa com o relato do capítulo 12.

[14] Reportaje de ALC, 14 de octubre de 2004.

[15] Este último inciso está adaptado do Tomo III do comentário do Apocalipse, de próxima publicação.

[16] Pode consulta-se José E. Ramírez-Kidd, El extranjero, la viuda y el huérfano en el Antiguo Testamento (San José: Universidad Bíblica, 2003).

 

Juan Stam, 11.01.2007.

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